O PRÍNCIPE BASTARDO
***
O brilho do sol já se distanciava
do horizonte quando Damon cruzou os limites da floresta. Vinha montado num alazão
castanho e sua mãe num cavalo cinzento e nervoso. Cavalgavam já durante toda a
tarde e Damon não aguentava mais a demora.
Trajava um
manto cinzento e calças de couro negro. Tinha cabelos escuros e espessos,
cortados na altura da orelha de modo precário. Seus olhos extremamente azuis
brilharam ao encontrar os últimos raios de sol, o brilho era claro e limpo,
como o céu num dia quente de verão.
— Já
estamos chegando? — perguntou Damon.
— Ainda
não, somente mais algumas horas para chegarmos a Laran.
Finalmente, pensou Damon. Ele finalmente
estava chegando a capital do reino, aquele lugar que tinha sido sua casa por
anos, mas que agora não era nada mais que o seu objetivo. Ele não era mais
bem-vindo lá. Não depois do que aconteceu em Saluryao.
— Não tenha
pressa Dan, não tenha pressa de chegar lá. — disse sua mãe. Agharan não
aparentava a idade que tinha. Seus cabelos tão pretos como do seu filho se
espalhavam longos e negros pelo seu manto marrom. Seu olhar era frio e
sinistro, cinzento como a neblina que cobria Laran nas manhãs mais frias.
Passava um ar de sabedoria, particularmente estranho para uma mulher como aquela.
Muitos a
chamavam de bruxa, quando Dan estava perto o suficiente para escutar. Mas ele
passara a acreditar mais nisso após esses últimos meses. Por várias vezes sua
mãe parecia controlar poderes desconhecidos para os homens normais. Mas Damon
não teve coragem de perguntar, com medo que aquela duvida a ofendesse.
Continuaram no caminho de
cascalhos e terra, que saia da floresta vermelha em direção a capital, ao
norte. Aquele não era o melhor caminho para Laran, e nem o mais rápido. Mas era
suficientemente isolado para que Agharan ficasse mais calma. Aquele era o caminho
mais seguro de Saluryao para Laranx, devido aos últimos acontecimentos. E na
verdade o único possível, depois da traição que envolveu o reino.
Já era
noite quando chegaram numa taverna, na beira da estrada. No horizonte era
possível ver as pequenas casas e luzes na aldeia mais próxima, com uma fumaça
densa e clara saindo das chaminés. Agharam e Dan entraram e pediram um bom
pernil recheado com especiarias e bacon, pois já estavam fartos de comer
plantas ou animais caçados na floresta. Agharam também pediu uma grande caneca
de vinho tinto, e Dan pediu um corno de cerveja.
— Última
parada até Laran. — Agharam disse tomando um pouco de vinho. — Até o fim da
noite chegaremos lá.
Dan estava
satisfeito com aquilo. Não aguentava mais esperar. A traição que seu pai e seu
irmão sofreram não podia ficar assim, sem nenhuma punição. Aquela lembrança
causou uma irritação em seu pescoço, e Dan abriu um pouco o manto para coça-lo.
Uma marca negra rodeava seu pescoço como um grande colar de sombras, a pele
estava negra e não doía, mas para Dan a falta de dor só piorava aquele sua
parte que já estava morta.
— Não
mostre isso em lugar publico. — murmurou sua mãe um pouco nervosa. Depois
voltou a beber tentando não parecer realmente apreensiva, mas algo tirava sua
calma.
Um grupo de
três homens, que usavam mantos vermelhos do exército de Laranx, estava bebendo
e conversando em voz alta. Dan passou a escuta-los com mais atenção.
— Aquilo
não foi nenhuma injustiça. — disse um deles. — Os deuses favorecem aos fortes e
aquele rei é tudo menos forte.
— É claro
que ele não é forte, seu idiota. — respondeu o mais barbudo. — Ele é só um
menino, tem o que? Onde anos?
— Eu
gostava mais do rei anterior. — disse o outro, com a face mais surrada e cheia
de cicatrizes. — Ele não tinha medo de encarrar os inimigos no campo de
batalha, diferente desse rei criança que só sabe comer e beber, não deve nem
ter pelo no saco.
— Você gostava
do rei Royten? — perguntou o rapaz loiro. — Ele nos fez entrar numa guerra que
ele sabia que não podia vencer, e pagou o preço da sua burrice, prefiro esse
rei de paz.
— Se você
prefere essa paz enganosa, você não prefere o rei Benniff. Você prefere sua mãe,
foi à rainha que decretou a paz e pretende casar o rei com a princesa de Saluryao.
— disse o barbudo.
São tolos, Damon refletiu. Mas no fundo eles simplesmente não entendem
como o que aconteceu em Saluryao irá afeta-los, ou talvez simplesmente não se importem.
Dan e sua
mãe terminaram sua refeição quando os soldados reais se levantaram e saíram da
estalagem sem nem pagar pela bebida consumida. Os cavalos de Dan não estavam
nos estábulos como os outros, a pedido de Agharam eles os prenderam mais para
dentro da pequena mata de se abria no lado oeste da estrada. Eles não podiam dar
mole ao ponto de deixar expostas certas coisas tão valiosas, logo ali, tão
perto da capital. Sua mãe estava selando seu cavalo quando Dan retirou algumas
adagas da sua sela e cobriu seu corpo com a cota de malha e os mantos negros.
Prendeu o escudo negro e arredondado nas costas, um que tinha um bizarro desenho
de um homem enforcado pintado de branco.
— Dan...
não. — pediu sua mãe.
— Eles
insultaram meu pai, não merecem nenhuma misericórdia.
Sua mãe
ficou apenas fitando Dan quando ele prendeu o cinto que antes era do seu pai. No
lado esquerdo uma espada lendária estava presa, com seu cabo feito de ouro e
pedras preciosas. Colocou o elmo negro, fechou o capacete e se embrenhou na
floresta.
Os três
soldados estavam parados na entrada dos estábulos, bebendo cerveja e vinho em
garrafas de vidro. Dan se moveu pelas sombras até estar perto o suficiente
deles. Ele vinha por detrás dos estábulos, e pretendia pega-los de surpresa.
Uma adaga
voou e adentrou a nuca do soldado loiro, ele caiu com um arquejo suave. O
barbudo tentou puxar sua espada, mas já era tarde demais e Dan saltou para
atingi-lo com duas adagas, uma afundou seu olho e a outra perfurou sua testa.
Somente o cara surrada sobrou e já estava com a espada em mãos.
Dan
desembainhou sua espada, e sua lâmina negra brilhou ao refletir as chamas das
tochas. Ele sacou também o seu escudo e o segurou com o braço esquerdo. O soldado
estava surpreso ao ver aquela espada.
— Não pode
ser. — disse ao olha-la por mais tempo. — Essa é a Espada de Anx. Ela tinha
sido pega pelo rei de Saluryao.
— Sim. — rosnou
Dan com uma voz quase demoníaca. — Você diz gostar da guerra, mas o que fez
para salvar o rei Royten? Por que você não batalhou?
O homem
atacou, mas Dan defendeu com o escudo.
— Você não
pode me matar, seu tolo covarde. — berrou logo em seguida.
As espadas
se chocaram no ar criando uma explosão de faíscas. O rapaz era um bom lutador e
seus golpes eram bem colocados e ritmados. Mas Dan tinha o escudo e uma espada
lendária ao seu lado. Nada que aquele maldito tinha.
Defendeu um
corte pesado com o escudo e contra-atacou atingindo o flanco esquerdo, seu
manto vermelho foi cortado e sua cota de malha não prevaleceu na luta contra a
lâmina das trevas.
O homem
brandiu sua espada, mas Damon fez a dele encontra-la no ar e a jogou para
baixo. Bateu na cabeça do homem com o escudo e pisou em sua mão direita,
sentindo um tremor de dor, mas depois o homem a largou. Seu elmo amaçado estava
sujo pelo sangue que saia do seu rosto.
— Perdão...
não devíamos ter feito aquilo, mas não foi culpa minha... eu... eu apenas
obedeci as ordens do meu Duque.
— Quem é o
seu Duque?
— ...
Caur...Caurik... Armont duque de Caurik. Deixe-me ir... não me mate. Por favor.
— Você me
ajudou de certa forma. — ponderou Dan. Sacou a bolsa com as moedas de tributo
que aqueles soldados vieram cobrar na aldeia. — Darei a você uma morte rápida.
Enfincou a
lâmina em seu coração numa estocada rápida e profunda.
***
Mantos
vermelhos também tremiam nas ameias da grande muralha externa de Laran, a
capital do reino de Laranx, quando Damon e Agharan entraram, transpassando o
portão principal. Passaram sob olhares silenciosos, porém atenciosos dos
arqueiros lá de cima. Dan estava nervoso com aquilo, temia uma possível
revista. Não poderiam encontrar a espada de Anx com ele, ou estaria com grandes
problemas.
— Para onde
vamos agora? — Dan perguntou a sua mãe.
— Se não me
engano, a mansão deles fica ao sul da cidade.
Os dois
prosseguiram cortando as ruas e vielas da grande capital. Não havia ninguém
andando pela rua, apenas gatos e ratos que se envolviam numa perseguição
eterna. Damon viu subindo uma ladeira estreita um grupo de cavaleiros,
reconheceu um deles.
Desceram por toda a cidade, mas mesmo que fosse
para o lugar mais baixo, era possível ver no topo leste, no alto da colina, o
castelo negro e assustador dos Anx. Cheio de muralhas negras e altas, torres
grandes e afiadas e de seres assombrosos. Eram demônios, demônios de verdade,
transformados em estatuas por heróis do passado e que serviam de ameias para os
arqueiros sombrios que guardavam aquela fortificação real.
— Chegamos.
— disse Agharam, quando parou a frente de uma grande casa. — A senhora que mora
aqui, Alisy Silver, foi minha companheira de viagem anos atrás, aposto que
podemos conseguir uma moradia e empregos com ela.
Quando
chegaram pertos dos muros, um guerreiro apareceu do alto, com uma besta
apontada para a cabeça de Damon.
— Quem são
vocês? — perguntou.
— Sou
Agharan Soulwood, vim aqui para falar com sua senhora, Alisy Silver.
— Esperem
aí.
O rapaz
desapareceu, mas voltou depois os levando ao encontro da senhora Alisy, uma
mulher que, assim como Agharam, não aparentava a idade que tinha. Ela aceitou
os serviços de Agharam, contratando-a com uma ama, para Damon deu o trabalho de
ser membro de sua guarda pessoal, após mostrar sua habilidade com a espada. Ela
dispensou Dan, o mandando para o quarto de hospedes, mas queria continuar falando
com Agharam.
O aposento
de hospedes não era grande, mas também não era pequeno. Para Dan, qualquer
coisa melhor que um saco de dormir no chão já era o suficiente. Uma criada
trouxe água quente e preparou uma banheira para ele. Após meses se banhando em
rios e lagos frio pela floresta vermelha, um banho quente era mais do que agradável.
Saiu da
banheira se sentindo um pouco mais vivo. Secou-se e vestiu seu calção de couro.
Colocou sua camisa de linho negro e sua cota de malha. Cobriu-se com o manto
escuro e prendeu o cinto em sua cintura. A espada do seu pai estava presa a
ela. Pôs o elmo, afivelou as grevas, colocou a manopla. Cobriu a cabeça com o
capuz do manto. Estava pronto para começar sua vingança.
— É o seu
primeiro dia aqui, não pode esperar até amanhã, pelo menos. — pediu sua mãe ao
entrar na sala e ver o filho trajando a armadura.
— Eu
preciso fazer isso. — disse Damon. — É o desejo dos deuses, mãe.
— Mas a
senhora Alisy irá dar um jantar para nos receber, o que ela pensará se você não
vier.
— Não se
preocupe. Chegarei bem antes disso. Vi um inimigo no caminho, começarei com
ele.
Fechou o
capacete e saiu pela janela, saltando de teto em teto, escalando e correndo por
entre as pequenas vielas da cidade. Esgueirou-se como um rato até chegar à
ladeira por qual passou mais cedo. No final da rua viu os mesmos homens
transportando uma carroça com alguns barris. Eram dois homens, o do meio era
Ethan Lokel, o antigo líder da equipe de batedores do rei Royten.
Ethan era
um homem alto e magro, e mantinha sua boa forma física, Dan pode notar, ao se
aproximar pelos telhados. Mantinha seu sorriso debochado e seu olhar de
desprezo que mirava seus dois ajudantes, dois soldados que Dan não conhecia.
Esse é o momento, pensou Dan fitando o
céu. As estrelas brilhavam fracas, piscando e quase desaparecendo, sendo
engolidas pelas trevas que tomavam os céus todas as noites. Uma adaga foi
lançada e atingiu o pescoço do soldado da direita, que caiu num arquejo
agoniante.
Damon
saltou com o escudo em mãos, desceu atingindo o soldado da esquerda sem
piedade, lançando seu corpo para longe. Ethan correu sua mão até a bainha, mas
não teve tempo. Dan girou o escudo atingindo sua cabeça, entortando o elmo e
fazendo-o cair no chão.
Damon o
arrastou para dentro, ainda semi-acordado, murmurando coisas sem sentido. O
prédio era simples e continha dois andares, o primeiro, lotado de barris, tinha
paredes de pedra cinzenta, e uma escotilha que levava para o porão estava
aberta. Lá a escuridão reinava e Dan não teve tempo para ir espiona-la.
Levou Ethan até o segundo andar,
onde alguns sacos de pavios estavam amontoados nas paredes. Dan deixou Ethan
jogado em um desses sacos. Desceu e subiu as escadas repetidas vezes, trazendo
para cima barris do líquido que Dan constatou ser óleo inflámavel, a mesma
usada para queimar os acampamentos do antigo rei.
Quando tudo
estava pronto ele acordou Ethan, retirou o elmo e o encarou nos olhos. Ethan se
assustou e estremeceu ao ver Damon ali, parado em sua frente. Foi com sua mão
da cintura, mas não encontrou nada, Dan havia retirado sua espada e punhal.
— D-Dam...
Damon? — o soldado perguntou gaguejando. — Não pode ser...
Dan riu
profundamente daquilo.
— Fui
enviado de volta pelos deuses. Eles me deram o que eu mais pedi. Uma chance de
vingança, uma vingança pelo que vocês fizeram contra meu pai.
— Não... —
Ethan tentava se manter calmo, mas lagrimas escapavam dos seus olhos. — Eu...
eu não fiz nada contra seu pai.
—
Mentiroso! — rugiu Dan ao dar uma pancada no nariz de Ethan. — Você era o
batedor dele, era seu trabalho avisar que uma tropa inimiga se aproximava.
— Não foi
minha culpa. — ele disse já chorando. — Eu não vi, eu juro.
— Você fez
parte da conspiração o tempo todo. Você não avisou de propósito, seu verme. —
Dan esbofeteou o soldado mais uma vez.
— Eu vi...
você estava morto... eu vi com meus próprios olhos eles te enforcando... Não
pode ser.
Dan
gargalhou sinistramente, agora. Na sua frente um dos homens que mais se
orgulhavam da sua boa vista, o líder da tropa de batedores do rei, estava
duvidando da própria visão.
— Por que
você não fez nada? — ele perguntou. — Você viu o filho do seu rei sendo morto e
não faz nada?
— A rainha
ordenou... eles pediram uma recompensa em troca, mas ela disse que poderiam
ficar com o bastardo, o que eu podia fazer?
— Você é um
traidor de merda! Você traiu meu pai, você me traiu e você com certeza trairá
meu irmão assim que tiver chance.
— Não, eu
juro... sou inteiramente fiel a coroa de Laranx, sempre fui. — ele disse, como
rosto sujo pelo sangue que saia incessantemente de seu nariz.
Dan não
acreditou nele. Amarrou uma corda em seu pescoço, prendeu-a no parapeito da
sacada e o jogou para baixo, apenas para fazê-lo sentir o que ele sentiu. A
sensação da corda te sufocando, se fechando em torno do seu pescoço num aperto
mortal. O ar se esvaindo dos seus pulmões, suas mãos balançando, tentando fazer
algo impossível, porque aquelas cordas, assim como as cordas que enforcaram
Damon, não iam se quebrar.
De longe
era uma linda visão. Vê-lo enforcado naquela casa dava a Dan uma sensação de
paz interior. Um a menos, pensou. Uma víbora a menos para sujar esse reino.
Mas Dan
sabia que ele não era o único, havia muitos outros, mas a hora deles ainda iria
chegar. Segurou o arco que roubou de um dos soldados com força, mergulhou a
ponta da flecha num archote que iluminava a rua. A chama crepitava fazendo o
aço entortar aos poucos. Apoiou-se em seu joelho, arqueou os braços, respirou
profundamente, depois segurou. A corda tremia em seus dedos, a tensão parecia
rugir, como um leão pronto para o ataque. Soltou, por fim, fazendo a flecha
voar por toda a rua para atingir o primeiro barriu. O ataque o fez cair, as
chamas se alastraram encontrando os outros barris.
Uma
explosão tomou a casa. A frente das chamas o corpo do Ethan lembrava muito o
desenho do escudo de Damon. O homem enforcado. O cavaleiro negro da noite. O
assassino do reino. Era assim como as pessoas o chamariam após ouvir os relatos
do soldado que Dan atacou com o escudo, mas que apenas foi jogado para trás e acordou com o
som da explosão.
Mas Dan
queria que aquelas histórias passeassem pelo reino. Queria que as pessoas
temessem a escuridão, temessem encontra-lo. O medo devia tomar conta daqueles
traidores. Devia se alastrar por aquele ninho de cobras, como as chamas se
alastravam pelas casas.
Estou apenas começando, Dan refletiu
saindo dali rapidamente. Eles terão
muitos outros motivos para me temer.
P.S.: Novos capítulos e uma página exclusiva para essa Web-série de Contos serão lançadas ano que vem... Aguardem!
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